Ana Laura Ferraz
Para os type lovers de plantão, já aviso logo: o artigo de hoje não vai te ensinar nada sobre type design, infelizmente. Ele é apenas o resultado da jornada pessoal de aprendizado da designer que aqui vos fala. Ele inclui um tantão de frustrações, inseguranças, conquistas e - alerta spoiler! - um final feliz.
Neste verão europeu de 2022 eu participei de um curso intensivo de type design chamado Type Paris. Passei cinco semanas em Paris estudando type com o objetivo de desenvolver uma família tipográfica única, com diferentes pesos e estilos. Eu aprendi muito sobre type design mas talvez o meu desenvolvimento pessoal possa ter sido maior do que o meu desenvolvimento profissional durante esse período. Então, venho aqui hoje dividir com vocês meus maiores aprendizados pessoais depois de estudar type design 12 horas por dia, 7 dias por semana, durante 5 semanas seguidas.
Mas antes, acho que faz sentido me apresentar: sou a Ana, designer na Plau. Moro na Alemanha, ganho todas as trívias possíveis quando o assunto é Disney e sou apaixonada por tipografia, porém não sou a mais experiente quando o assunto é desenhar letrinhas. Foi com o intuito de evoluir minhas habilidades tipográficas que me enfiei num trem a caminho de Paris. E aqui está o que aprendi de mais importante durante a minha experiência no Type Paris:
A gente tá sempre buscando validação externa, é normal. Todo mundo gosta de se sentir admirado. Mas se você estiver desenvolvendo um projeto pessoal, que não tenha nenhum cliente envolvido, não se preocupe demais em tentar ser o melhor sob os olhos de todas as outras pessoas do mundo. Isso não significa que você não deva pedir a opinião de outras pessoas e orientação de quem sabem mais do que você no assunto, afinal, é dessa forma que a gente aprende e evolui. Mas se o seu primo distante não gostar do seu projeto ou se você não ganhar um prêmio, tá tudo bem. Você é o único que precisa estar feliz com os seus resultados. E eu fiquei super feliz com o meu.
O processo do Type Paris é o seguinte: A gente fica duas semanas inteirinhas sem abrir o computador, só desenhando as letras à mão com caneta estilo posca em papel vegetal. O processo é bem lento e super detalhado, você primeiro desenha a lápis, quando estiver satisfeito com a forma desenha a caneta e em seguida passa um estilete para corrigir curvas e erros. Mas você tem que ser rápido e desenhar diversas letras, e não ficar tentando desenhar o "n" perfeito, como eu fiquei no início.
No começo eu me sentia completamente perdida nesse processo e, honestamente, sentia que era uma grande perda de tempo. Eu levava cerca de 20 a 30 minutos para desenhar uma única letra para logo em seguida o instrutor vir falar tudo o que tinha de errado com ela. Ou seja, eu teria que redesenhar tudo e ainda desenhar novas letras.
Eu demorei muito para entender o sentido nisso tudo e tentei lutar contra esse processo (e quebrei a cara). Logo em seguida, percebi que precisava deixar de lado a necessidade de saber e controlar tudo por trás do processo, o que foi bem difícil para mim. Seguir um processo que eu não entendia me dava aquela sensação de "socorro-não-faço-a-menor-ideia-do-que-estou-fazendo” que pode ser bem desesperadora.
Mas se permitir seguir o fluxo e tentar ver o que poderia descobrir por conta própria durante esse processo foi muito interessante. Depois que você deixa de lado a pressão de alcançar algo específico é maravilhoso seguir em frente, há muita liberdade em se desapegar do que o resultado pode ser.
Rascunhos e letras em tinta em papel manteiga: A foto de cima são os primeiros rascunhos de letras que fiz no primeiro dia do curso. Na foto debaixo, os rascunhos do que viria a ser a minha fonte.
Quando fui para o Type Paris eu tinha um objetivo: terminar o projeto. Na verdade eu não fazia ideia do que isso realmente significava porque não sabia o que eu teria que desenvolver de fato para ter um projeto considerado "terminado” para receber o diploma. Mas, considerando que eu não sou uma mestre desenhando curvas bezier e também não sou muito familiarizada com caligrafia e suas técnicas, meu plano era acompanhar as aulas e não ficar para trás.
Depois de uma primeira semana de estudos muito intensa lutando contra milhares de inseguranças, percebi que precisava desenvolver uma estratégia ou não conseguiria atingir meu objetivo. Percebi que, para criar a minha fonte nesse curto período de tempo, eu precisaria tomar importantes decisões logo início do processo e não olhar mais para trás. O estilo das serifas, como as curvas se juntariam as hastes verticais, qual a tensão das curvas em letras estratégicas, entre outras decisões foram tomadas logo no início e, mesmo não estando cem por cento satisfeita com elas, segui em frente. Lutar contra a vontade de voltar atrás, começar do zero e mudar tudo o que não me fazia feliz era uma presença constante nos meus dias.
Design de tipos é uma coisa estranha para caramba. Você precisa ter todos os caracteres mesmo que eles não estejam todos bons, só então consegue ver se tudo funciona de alguma forma e descobre o que você realmente precisa mudar em cada um deles para tudo funcionar melhor junto.
Eu não estava feliz com minhas serifas e outros detalhes e fiquei ouvindo de alguns colegas que eles haviam dado alguns passos para trás, alterado várias coisas, e como estavam felizes com o resultado após essas mudanças. A vontade de fazer o mesmo era gigante mas eu sabia que se seguisse por esse caminho eu ia me embolar, porque conheço minhas limitações. No final, manter essa estratégia foi super importante para finalizar meu projeto.
Outra decisão estratégica que tomei foi a de não desenhar as itálicas. Eu queria muito aprender e ter essa experiência mas depois de estudarmos a estrutura das itálicas por alguns dias, percebi que não tenho as habilidades - ainda! - para desenvolver romanas e Itálicas em três semanas. Percebi que para atingir meu objetivo de finalizar o projeto eu precisaria focar em um ou outro e as itálicas ficaram para uma próxima.
Romana na esquerda e itálica a direita. Eu adorei o resultado do meu n itálico no papel vegetal mas tive muito trabalho para conseguir fazer ele funcionar no vetor.
Eu ouvi muito, muito feedback. De diversos type designers diferentes. Pessoas com opiniões diferentes e visões diferentes de mundo. Algumas eram mais diretas, outras nem tanto. Algumas mais detalhistas nos seus feedbacks, outras mais superficiais. Algumas mais rudes e outras super simpáticas.
Alguns me disseram que o que eu tava fazendo tava uma porcaria, para mudar tudo. Enquanto outras diziam que já estava tudo ótimo, só segue em frente. Socorro, que confusão mental. E eu cheguei a mencionar que ouvia tudo isso no mesmo dia? Pois é, brabo…
Não importa que tipo de projeto você está fazendo, quanto mais você pedir opinião, mais opiniões distintas vai ouvir. Cabe apenas a você descobrir o que funciona melhor para o projeto. No que você pode focar agora e aplicar imediatamente ou o que você só terá tempo para aplicar mais tarde ou ainda depois que o projeto estiver pronto de fato.
No meu caso, eu entreguei meu projeto final no curso mas ainda tenho muitas correções a fazer. A foto abaixo é da última sessão de feedbacks que eu tive. Consegui ajustar algumas coisas a tempo de apresentar, outras ficaram como dever de casa pro futuro.
Resultado de uma sessão de feedbacks no Type Paris. Ou seja, um montão de coisas para alterar.
O que me leva diretamente ao próximo ponto, que é:
Ouvir comentários positivos sobre o nosso trabalho é como música para os nossos ouvidos. O problema é que esse tipo de feedback não leva a gente muito longe. O melhor tipo de feedback é aquele que realmente foca no que não está funcionando, onde dá para melhorar e onde tem que evoluir mesmo.
Nas sessões de feedback do Type Paris às vezes um instrutor me guiava para identificar o que não estava funcionando e me ajudava a corrigir erros ou até mesmo me mostrava como construir certa letra do zero. Outro instrutor só comentava "não está bom” e eu que tinha que quebrar a cabeça para descobrir o que diabos que tava errado e, depois, como consertar.
O importante mesmo é vestir sua armadura invisível para levar porrada sem se machucar. Ou seja, conseguir ouvir uma enxurrada de coisas negativas sobre o estágio atual do seu projeto sabendo que aquilo não te define e que será essencial para construir um resultado final muito melhor.
Instrutor convidado Martin Majoor e minha querida colega Rabab Charafeddine. Eu aprendi muito com o Martin, mas senti que o feedback que ele me dava era muito focado no que estava funcionando na minha fonte.
É um trabalho mental árduo não se permitir levar o que falam para você pro lado pessoal quando lhe dizem constantemente, dia após dia, o que há de errado com seu trabalho. Como eu disse antes, filtrar o feedback que você recebe é muito importante para que você possa focar no que mudar para evoluir e não tanto no fato de que seu trabalho ainda não está bom.
Mas estar inserido em um ambiente culturalmente diverso significa encarar formas de comunicação distintas. Se você sentir que está sendo destratado de alguma forma, não tenha medo de impor limites. Não é porque você é um estudante que não deve ser tratado com o respeito que merece.
Eu estava estudando em uma sala de aula com outros 17 designers gráficos super talentosos e com 2 a 4 instrutores por dia, por cerca de 12 horas. Havia muito a aprender uns com os outros, mas também significava que eu estava constantemente comparando meu trabalho com o de todo mundo. O que é normal (mas também é desgastante). Mesmo se você estiver satisfeito com como o seu projeto ta ficando, em algum momento você vai pensar "Putz, eu gostaria de ter feito aquela letra maneira que Yusuke inventou!".
Tirar um tempo para trabalhar completamente sozinha, em uma sala com mais ninguém, cem por cento focada apenas no meu trabalho, foi realmente essencial para me manter equilibrada e no caminho certo.
Olha só quantas letras o Yusuke já tinha pintado! Eu ainda estava desenhando meu primeiro"p” a lápis e estava tentando não me desesperar.
Eu sou uma pessoa que reclama. Eu preciso botar pra fora quando algo me incomoda, é meu jeito de lidar com minhas frustrações. Minha primeira semana no Type Paris foi especialmente difícil porque era focada em caligrafia e desenhos de letra a mão, coisas que eu não domino. Ou seja, eu tava morrendo de medo e me sentindo completamente perdida. Quando eu olhava a minha volta, era como se todo mundo estivesse entendendo tudo o que tava rolando e o que deveríamos fazer perfeitamente, o que me fez me sentir pior ainda.
Ter a oportunidade de conversar com outros colegas sobre como eu estava me sentindo me ajudou muito e abriu meus olhos para o fato de que estávamos todos lutando contra os mesmos monstros. E também me levou a construir um vínculo mais próximo com os colegas com quem eu conversei.
Então, se você for que nem eu, não engole tudo não! Encontra a pessoa certa pra conversar e reclama sobre tudo o que não tá te agradando.
Na turma havia outras 17 pessoas estudando comigo. Nossos dias eram compostos por uma sessão de estudos de quatro horas pela manhã, com apenas dois instrutores presentes, e outra sessão de quatro horas à tarde com - adivinhem? - apenas dois instrutores. - Havia uma outra sessão de quatro horas sem instrutor nenhum no meio do dia, caso você esteja se perguntando como as doze horas por dia se somam. - Então, sim, muitas pessoas para não muitos instrutores.
Era super compreensível que não conseguisse ter uma sessão de feedback com todos os quatro instrutores todos os dias. Mas eu precisava estar atenta para ter certeza de que receberia pelo menos uma sessão de feedback por dia com pelo menos um deles. Isso significava que, no final do dia, eu precisava ter certeza de que os instrutores sabiam que eu ainda não tinha falado com nenhum deles, se fosse o caso. Pode parecer meio óbvio falar isso, mas em certas situações a gente pode se deixar levar, deixar para lá e sai perdendo. Se eu não corresse atrás do que era meu por direito, ninguém iria por mim então eu não podia dar mole.
Aprender algo novo pode ser frustrante para caramba, principalmente quando você já é um profissional atuante em outra área. Eu tinha que ficar me relembrando que, embora eu ainda estivesse começando a explorar o design de tipos e estivesse soterrada de inseguranças e muitas dúvidas, eu sou uma designer com alguns anos de experiência e, modéstia parte, eu sou muito muito boa no que eu faço.
Como eu estava cem por cento focada em outra coisa por cinco semanas, era fácil me distrair e esquecer que já tinha trilhado um caminho parecido com design gráfico, que é algo que eu domino com mais facilidade hoje em dia.
Quando chegou o momento certo, pude finalmente colocar minhas melhores habilidades em jogo e mostrar minha família tipográfica através dos meus olhos de designer. Desenvolvi um pequeno specimen e uma apresentação sobre a minha fonte e, embora algumas letras não estivessem perfeitas, esse foi o momento em que eu senti realmente orgulhosa do meu trabalho.
O"y" e o"@" precisam melhorar, mas brincar com o tipografia é uma das coisas que mais gosto de fazer como designer. Poder mostrar isso para todo mundo me fez sentir ainda melhor sobre o meu projeto.
O que nos leva ao próximo ponto, que é:
Às vezes não temos tempo suficiente para desenvolver um projeto tão bem quanto gostaríamos. O que não significa que o resultado não esteja bom, talvez só não seja tão bom quanto o melhor que você consegue.
Olhar para trás, para onde você começou, e onde está terminando é uma experiência muito gratificante e realmente necessária. Ela nos lembra onde estivemos, dos perrengues que passamos, dos obstáculos superados e também nos dá dicas de para onde ir em seguida.
Reconhecer o quão longe você chegou é como entregar a si mesmo um prêmio. O melhor dos prêmio possíveis, porque veio de você, não dos outros.
Recebendo o meu diploma: Como dá pra ver, tava difícil de contar a felicidade ali.
Quando estamos passando por uma experiência completamente nova é fácil se deixar levar pelas frustrações. Se sentir incapaz ou com medo de falhar pode nos deixar cegos diante das nossas realizações. Focar nos pontos positivos do que estamos fazendo e olhar atentamente o quão longe chegamos é fundamental para nos dar ânimo e energia para continuar. Essa auto avaliação positiva nos dá uma certa independência para seguir em frente sem precisar de validação externa, o nos dá mais segurança no que estamos fazendo também.
Eu sentia que precisava ser a minha própria cheerleader durante todo esse processo, pra não deixar as frustrações tomarem conta.
Às vezes eu sentia que meus colegas também precisavam de um ânimo, então sempre que podia eu tentava dar uma animada na galera também. Podia ser só um comentário sobre algo que eu gostei no trabalho deles ou qualquer outro comentário engraçado para tentar quebrar a atmosfera de estresse, que era bem constante na sala.
Eu peguei covid na primeira semana do Type Paris, dá pra acreditar? Tive que voltar para casa - na Alemanha - e fiquei em quarentena por uma semana, o que é tempo para caramba considerando que o programa inteiro tinha só cinco semanas. Eu - que não fico desesperada com nada, como vocês puderam ver ao longo desse texto - tava super preocupada em perder tantos dias de aula. Os instrutores foram super legais em organizar sessões diárias de feedback on-line comigo, mas o mais importante mesmo foi como meus colegas me ajudaram nesse período. Eles me ligavam no zoom sempre que surgia um assunto novo na aula, me mandavam fotos, anotações e áudios explicando o que eu havia perdido no dia. E mesmo depois que eu voltei para a aula presencial, eles continuaram me ajudando para eu acompanhar tudo o que eu havia perdido na segunda semana de aula.
Sou muito grata por ter passado por essa experiência junto com essas pessoinhas lindas aqui da foto. O suporte de todos eles foi muito importante para mim.
Type Paris 2022: Lyon trip to the Musée Gallo-Romain.
Para concluir, sou extremamente grata a minha querida equipe Plau, que são um abraço em forma de estúdio. Aline, Carlos, Gabriela, Rodrigo e Valter, obrigada por todo apoio diário. Sou eternamente grata a vocês. Cês são demais! Eles até assistiram minha apresentação final do Type Paris virtualmente, acreditam?
Bom, isso foi o que eu aprendi no Type Paris num nível de desenvolvimento pessoal. Um artigo mais útil, que fala de fato sobre o que eu aprendi sobre type design, já está no forninho e sairá em breve. Enquanto isso, você pode conferir os projetos dessa galera maneira nesse link aqui: https://typeparis.com/people/
E matar um pouco a curiosidade sobre como ficou a família tipográfica que eu desenvolvi com as fotos abaixo:
Ana Laura Ferraz