Valter V Costa
Nossa viagem até as páginas siderais de Galileu Galilei é o resultado de uma parceria entre a Plau e o podcast Vinte Mil Léguas, produzido pela Livraria Megafauna. Escrito por Valter V Costa, este texto foi editado por Leda Cartum e Sofia Nestrovski – criadoras, roteiristas e apresentadoras do podcast – e revisado por Rita Palmeira. A parceria foi coordenada por Manuela Stelzer e Irene de Hollanda.
Quando pensamos nas grandes descobertas científicas da história, dificilmente pensamos na forma como elas surgiram. Não costumamos parar para entender como elas foram, por assim dizer, “fermentadas” (não só no caso de Louis Pasteur!), ou seja, que processo levou a certa conclusão. Tampouco pensamos em como essas ideias foram divulgadas e como brigaram por seu espaço no debate público.
Tendemos a imaginar que conceitos brilhantes simplesmente brotam da cabeça de indivíduos geniais – no máximo, às vezes, se aproveitando de um golpe de sorte, como na famosa anedota de Isaac Newton e a maçã que o levou à teoria da gravidade – e automaticamente se impõem na vida coletiva pelo simples fato de serem “a verdade”. Mas não é bem assim. Mesmo as descobertas mais revolucionárias enfrentam um longo percurso até serem tomadas como verdade. Não só isso, mas elas possuem uma forma própria: são publicadas de certo jeito, com certos argumentos, certos experimentos, certos apoiadores, certos opositores e através de certos veículos, que também ajudam a definir a vida dessa ideia. Basicamente, elas estão sempre situadas, nunca nascem do puro ar.
Nas últimas décadas, podemos pensar no artigo acadêmico como o formato que dá vazão aos mais recentes estudos da comunidade científica, e as revistas científicas como o canal adequado para esses textos. Se voltarmos mais no tempo, encontramos o livro atuando como o espaço (e objeto) que agrega o trabalho dos cientistas de cada época (ou “naturalistas”, considerando que a categoria de “cientista” não tem muitos séculos de vida). É o caso, por exemplo, da publicação de A Origem das Espécies, de Charles Darwin, em 1859 – tema da primeira temporada do podcast Vinte mil léguas (Livraria Megafauna/Revista Quatro Cinco Um/ Instituto Serrapilheira), que lê os cientistas como escritores. Ainda podemos viajar bem mais longe no tempo e continuar encontrando o livro como suporte dos debates científicos e filosóficos.
Nessa viagem, vamos encontrar Galileu Galilei (1564-1642), tema da terceira temporada do Vinte mil léguas, cujos doze episódios acabam de ir ao ar. Aqui vamos mostrar, como no podcast, que as ideias de Galileu não surgiram espontaneamente, mas tiveram um substrato muito bem pensado para que fossem passadas adiante. Bom, vamos focar em algumas dessas ideias, ao menos. Queremos navegar pelo livro Sidereus Nuncius, de Galileu Galilei, publicado no ano de 1610. Escrito inteiramente em latim, o livro tem um título que significa “o mensageiro das estrelas” ou “mensagem sideral” (e há ainda outras traduções possíveis para ele).
Quando falamos de eventos tão distantes como esse, é interessante nos situarmos historicamente, para conhecermos bem o chão onde estamos pisando agora. Talvez você já tenha feito duas contas de cabeça ao longo dos últimos parágrafos: Sidereus Nuncius foi publicado mais de 400 anos atrás, e dois séculos e meio antes do livro do livro mais famoso de Darwin. Ele também aconteceu 179 anos antes da Revolução Francesa, por exemplo, e 82 anos antes da convenção do metro como unidade de medida de comprimento.
Mas enquanto 1610 pode parecer um passado muito distante para nós, esse ano também é, naturalmente, o futuro para muitas outras épocas. É na época de Galileu (e com participação decisiva dele) que o telescópio é popularizado e aperfeiçoado, mudando para sempre o estudo do espaço e dos astros – esse foi o assunto dos episódios 2 e 3 dessa temporada do Vinte mil léguas.
Sidereus Nuncius, o livro de Galileu, também está quase um século à frente das teses de Martinho Lutero que desencadeiam a Reforma Protestante e a 160 anos de distância da criação da prensa tipográfica de Johannes Gutenberg (que não pode receber os créditos por ter inventado a impressão, como muitas pessoas pensam, mas sim por ter sistematizado a impressão em um modelo prático de produção – além de ter feito isso na Europa, o que costuma atrair alguns louros a mais para qualquer invenção).
Esse marco é particularmente importante para nós, pois queremos justamente comentar o Sidereus Nuncius como um produto impresso, não apenas como recipiente de ideias, portanto, mas também como um objeto que formata essas ideias. O livro de Galileu destaca-se pela forma como aproveita as possibilidades da página impressa para apresentar suas descobertas.
Mas, afinal, que descobertas são essas? Apesar de ser um livro pequeno, o Sidereus Nuncius relata várias novidades celestes, e que transformam para sempre a astronomia. Uma boa parte delas diz respeito à nossa Lua (detalhes sobre as fases da Lua – vista da Terra – e sobre sua topologia, por exemplo) e as Luas de Júpiter, e mesmo sobre o todo do universo e das estrelas, drasticamente expandidos por Galileu.
Como foi dito no segundo episódio da temporada, Galileu não inventou o telescópio, mas fez vários experimentos que aperfeiçoaram o telescópio que existia até então – e que ainda nem tinha esse nome –, aumentando sua capacidade de ampliar objetos distantes. Apontando para o céu a nova invenção, Galileu reparou algumas coisas sobre a Lua. Até ali, ela era considerada um corpo perfeito, sem nenhuma falha. Foi Galileu quem notou uma particularidade de como a luz incidia sobre ela: se a luz não tinha um desenho perfeito – isto é, se a Lua tem manchas –, só poderia ser pelo fato de que a superfície que ela iluminava também não era perfeita. Galileu entendeu então que o solo lunar era acidentado, com montanhas, vales e crateras. Mas a tarefa não foi simples como pode parecer. Outros já tinham olhado para a Lua através do telescópio, que naquela época era um instrumento bem rudimentar, e não percebido a mesma coisa. Para interpretar o que estava vendo, Galileu usou muito do treinamento que, na juventude, teve em pintura e desenho (assunto do episódio 4 da temporada). Já tendo feito muitos exercícios de luz e sombra, Galileu entendeu que o que estava diante dele não eram manchas, mas elevações e depressões: a Lua tem vales e montanhas, assim como a Terra.
Com essa descoberta, ia por água abaixo a ideia de que a Terra era acompanhada por um corpo sideral imaculado (ainda que já fosse muito bem reconhecido que a própria Terra fosse o lugar, por excelência, da imperfeição).
Apontando “o tubo” (um dos nomes pelos quais o telescópio passou na época) para mais distante, Galileu também reparou algo de diferente em Júpiter. Observando o planeta durante alguns dias, Galileu percebeu que ele estava sempre acompanhado por alguns “planetas” menores, que mudavam de posição, mas nunca saíam dali de perto.
Novamente, isso pode não impressionar muito hoje em dia. Mas a descoberta dos satélites de Júpiter representava mais uma ilusão perdida para a humanidade, já que era outro golpe no mito de excepcionalidade da Terra: não era só nosso planeta que era acompanhado por um corpo celeste. Além do mais, Júpiter tinha não um apenas, mas vários. Só Galileu observou quatro, e vários outros foram descobertos depois.
É provável que você conheça Galileu pelo entrevero, para colocar de uma forma leve, que teve com a Igreja ao defender o modelo heliocêntrico do universo, com o Sol no centro, e não a Terra (tema também dos episódios 8 e 9 da temporada). Não é exatamente por causa do livro Sidereus Nuncius que tal celeuma se inicia, mas as descobertas descritas nele dão argumentos fortes em favor desse modelo. Galileu também não é o primeiro a pensar que a Terra não é o centro do universo – Copérnico e Kepler (personagem do episódio 10), por exemplo, já haviam sugerido isso antes. Porém Galileu é determinante para expor a primeira ferida narcísica da humanidade, como Freud definiria depois¹.
Sidereus Nuncius é um livro graficamente encantador pois extrai o máximo das possibilidades da tecnologia de impressão da época usando poucos recursos. Galileu precisava de uma produção rápida e barata. Rápida, porque ele não podia correr o risco de alguém publicar aquelas mesmas descobertas antes dele, além de saber que o livro tinha o potencial de circular nos ambientes nobres de Veneza – carregando seu autor junto, evidentemente. E barata, porque ele mesmo financiou o livro enquanto lutava para fechar as contas. Do momento em que levou o manuscrito ao impressor Thomas Baglioni até a publicação do livro, passaram-se apenas seis semanas. E mesmo a redação, desde as primeiras observações que Galileu fez da Lua, não leva mais do que alguns meses.
A primeira coisa que podemos notar no livro é que ele é bastante tipográfico. Bom, era de se esperar, certo? Afinal, foi produzido tipograficamente e 160 anos após o surgimento do primeiro livro (ao menos na Europa) impresso com tipos móveis de metal. O Sidereus Nuncius, portanto, só poderia ser um belo livro tipográfico, não é verdade? Sim e não ao mesmo tempo.
A impressão é uma tecnologia que evoluiu muito pouco nos seus primeiros séculos de existência e que por muito tempo ainda conviveu com antigos hábitos. Antes da invenção de Gutenberg, os livros eram manuscritos e, como tudo já era feito à mão mesmo, fazia mais parte da rotina do livro a ornamentação, a cor, a iluminação com folhas de ouro. E o nascimento da prensa tipográfica não elimina de cara esses elementos, então por várias décadas muitos livros ainda eram produzidos com um misto de técnicas tipográficas e técnicas caligráficas (manuais).
Isso significa que quando vemos um livro impresso totalmente em preto, e tímido de ornamentos, é uma dica de que estamos diante de um livro já moderno. É o caso de Sidereus Nuncius. Não era só o espaço sideral que passava por uma revolução naquele momento, mas também o espaço da página, que ia tornando o livro mais parecido com o que conhecemos dele hoje. O livro de Galileu ainda é um pouco menos moderno na fonte do texto, baseada em antigos modelos caligráficos, embora o mundo da tipografia também já começasse a ser tomado pela padronização, com a busca por grids perfeitos para cada letra.
Mas o que marca mesmo o Sidereus Nuncius na história do livro (além do conteúdo revolucionário, é claro) são as ilustrações de Galileu. Para falar da Lua (a nossa), Galileu usa cinco ilustrações gravadas em cobre, mostrando diferentes fases e diferentes formas como a luz bate no solo lunar. Conseguimos ver as ranhuras do cobre formando as sombras das ilustrações, embora sejam bastante delicadas, em uma precisão maior do que a madeira geralmente ofereceria (outro suporte de ilustração bastante comum na época).
Galileu provavelmente já conhecia a Lua suficientemente bem – embora não estivesse usando “o tubo” há tanto tempo assim – para fazer uma representação até mais precisa da imagem dela. Mas a informação realmente relevante ali é que o solo da Lua é acidentado, então ele acentua essa característica para se comunicar com o leitor. Ele marca bem o contraste entre luz e sombra, faz o percurso da luz bem falho e, em quatro das cinco ilustrações, posiciona uma cratera bem no meio da passagem entre claro e escuro, deixando claro o tipo de relevo. Falamos aqui que o Galileu fez isso e aquilo, mas é importante lembrar que o livro é produzido em colaboração entre os rascunhos e ideias de Galileu e o trabalho do impressor e do gravador.
Nesse caso, portanto, o conteúdo em questão é um detalhe sobre uma Lua que já era conhecida, e por isso Sidereus Nuncius recorre a desenhos maiores, com mais elementos em cada chapa. No restante do livro, as ilustrações servem a mensagens bem diferentes dessa, então as composições também se adaptam para refleti-las.
Agora vamos falar de desenhos onde o que importa são as posições e os movimentos. Também por isso, passamos para o suporte de madeira, material que simplifica a produção pois pode ser impresso junto do texto, ao contrário das chapas de cobre, que devem ser impressas separadamente.
Antes de chegar em Júpiter, Galileu olha para as estrelas e percebe que elas são muito mais numerosas do que se imaginava, apresentando no livro a constelação de Plêiades. A página dupla de abertura desse capítulo é, provavelmente, a mais marcante de todo o livro, e mostra a constelação com uma explosão de estrelas de diferentes formatos ocupando as folhas e até ultrapassando as fronteiras do livro. Outra vez vemos um bom domínio da relação entre preto e branco, ainda que por motivos diferentes daqueles que vimos nas ilustrações lunares. Dessa vez, o mérito é o uso do branco da própria página, que se comporta como o vazio do universo e torna as estrelas ainda mais impactantes. A fluidez da composição também é notável, fazendo um movimento da página da esquerda para a direita (e o contrário também).
Veja o que fala sobre essa página dupla o Prof. Thomas Haddad, entrevistado do episódio 2 da terceira temporada do Vinte Mil Léguas: “Para mim, é não só uma das páginas mais bonitas, mas também uma das mais alegres da história da ciência. É um festival de estrelas. Uma coisa que você fica feliz de olhar, mesmo sem saber do que se trata.”
É importante notar que livros ilustrados já existiam há bastante tempo, mas o Sidereus Nuncius consegue desenvolver uma forma inventiva e própria de tratá-las, seja pelo aproveitamento dos recursos gráficos disponíveis, seja pela forma de abordar o seu tema. Especificamente no caso dessa explosão de estrelas da constelação de Plêiades (comentada no episódio 2), ela transmite a sensação de observar o espaço, não apenas relatar uma descoberta. Ou, como também afirma o Prof. Thomas Haddad: “Uma capacidade de comunicação, mas também uma capacidade de expressão”. Não à toa, a ilustração se torna independente do texto, vaza as margens tipográficas e consegue funcionar como um elemento à parte.
Já quando chega em Júpiter, o aspecto “bem tipográfico” do Sidereus Nuncius dá as caras novamente. O importante para falar sobre os satélites de Júpiter são suas posições. Galileu (e os demais artesãos envolvidos na impressão do livro, é sempre importante marcar) desenvolve uma solução que é quase irritante de tão simples e inventiva – sem contar que é mais integrada ao texto do que as anteriores. Ele usa uma letra “O” na horizontal para fazer o papel de Júpiter e asteriscos que funcionam como os satélites (foi o tema do episódio 3). Aqui, os desenhos aparecem dentro até de um mesmo parágrafo.
Cada composição mostra um arranjo diferente desses “pequenos planetas” e nem sempre os quatro satélites observados por Galileu aparecem ao mesmo tempo, já que ele percebeu também que, às vezes, eles podem se esconder por detrás do planeta, a depender do momento da observação. Juntos, esses desenhos passam a mostrar não as posições estáticas, mas o movimento das Luas de Júpiter (que ainda não eram chamadas assim na época). Então, além de ter conseguido encontrar uma forma eficaz – e pouco custosa, o que não é menos importante – de representar essa observação celeste, Galileu ainda tem o mérito de conseguir pensar a imagem sequencialmente.
550 cópias foram feitas e vendidas do livro de Galileu. Talvez não pareça um número grandioso de cara, mas pense que mesmo hoje em dia, no Brasil, muito autor ficaria feliz de esgotar uma tiragem de 550 cópias. Imagine então como seria na Veneza do início do século XVII. Dizer, por exemplo, que o livro era um objeto da elite seria até um eufemismo. Galileu alcançou números de best seller, do tipo que viraria assunto em todos os círculos intelectuais na cidade. Só podemos especular sobre o tamanho da influência que a forma desse livro-objeto teve no impacto que o conteúdo gerou nos leitores da época, mas é certo que essas duas coisas são inseparáveis, como Galileu fez questão de nos mostrar.
¹ Para Freud, as feridas narcísicas são acontecimentos que representam traumas na “autoestima” do ser humano. Elas seriam três: Copérnico e a astronomia moderna (podemos incluir Galileu) tirando a Terra do centro do universo; Darwin situando a humanidade como apenas mais uma entre outras espécies finitas que habitam o planeta (e, inclusive, derivada de outras) e a terceira seria do próprio Freud tirando parte do poder da nossa ação individual e colocando-o no inconsciente, fora do nosso controle direto.
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Valter V Costa