Rodrigo Saiani
Se você acompanha meu trabalho tipográfico há algum tempo, vai ter notado que eu insisto em trazer um tema recorrente para as coisas que eu faço: o tênis. O esporte aparece nas imagens que apresentam a Motiva, minha primeira fonte; no nome da Tenez (palavra em francês que deu origem ao nome oficial do esporte) e, de novo, na apresentação dessa fonte. Eu amo o tênis e tudo em volta do esporte. Toda vez que pinta uma chance juntar tênis e design, eu nem penso duas vezes antes de aproveitá-la.
Motiva Sans – O Specimen foi todo baseado em imagens antigas de tênis
Tenez – Nome e promo baseada em tênis. Design: Flora de Carvalho.
Tente jogar tênis um dia e vai perceber que é um esporte difícil de aprender. A começar pela técnica dos golpes (de nomes estranhos como forehand, backhand, lob, slice) até variáveis como o tipo da bolinha, sua rotação, tipo de quadra, temperatura, tipo de raquete, corda e pressão de encordoamento… ufa. Mas, na essência, o esporte é tão simples que parece banal: duas ou mais pessoas trocando bolinhas para lá e para cá até que alguém não consiga devolvê-la novamente para o lado do adversário.
Instruções de tênis no cinema – Vintage Tennis Posters
Instruções de Tênis por diagramas. Parece fácil, mas é difícil.
Aqui já entra a primeira coisa em comum com meu outro esporte predileto: desenhar letras. A simplicidade de desenhar letras esconde um universo de variáveis que requer tempo, persistência e treinamento para aprender.
Há uns anos atrás um colega tenista me recomendou o livro “O Jogo Interior do Tênis” do Tim Gallwey. Eu já lia tudo que podia sobre design, então achei que seria interessante uma mudança de ares para, quem sabe, conseguir enxergar uma relação entre outros assuntos e meu trabalho. E o livro foi um divisor de águas no meu jeito de enxergar o mundo.
No livro, o autor esclarece que todo mundo carrega dentro de si dois “eus” que brigam para dominar a cena. O primeiro “eu” é aquele que intuitivamente sabe o que fazer fisicamente para que uma ação aconteça - a tal da “memória muscular”. Os olhos enxergam a bolinha vindo, o braço e o corpo se ajeitam pra batida e tum, lá vai a bolinha na trajetória certa para o outro lado da quadra.
O segundo “eu” olha aquilo tudo que está acontecendo e não consegue evitar opinar sobre tudo: ih, esse pé aí tá muito lento, uhmmmm esse braço tá longe da bola. Putz! A bola tá vindo, que que você vai fazer? E se você perder esse ponto, o que vão pensar de você?
Fica claro que o objetivo do livro é fazer com que a gente consiga deixar um pouco de lado o segundo “eu”, aquele que julga tudo, para poder deixar as ações fluirem naturalmente.
Se você já apresentou um projeto de design para alguém, em algum momento passou muito nervoso – certeza! Será que ele vai ser aprovado? Será que eu consegui atender às expectativas; será que eu sou um “bom” designer? É como se cada projeto novo definisse nosso futuro e fosse uma medida absoluta de quem somos. Se a coisa desanda, o cliente não curte, a gente começa um desmonte total de quem nós somos. "O que eu tô fazendo da vida?"; “Eu não presto" e coisa até pior.
A educação tradicional nos ensina desde muito cedo que errar é um problema e que devemos evitá-lo a todo custo. Do outro lado, aprender qualquer coisa requer que a gente erre sem julgamentos até conseguirmos absorver essa nova habilidade. Como negociar essas duas coisas?
Podemos nos espelhar nos bebês. Nossos pais não tiveram que fazer planilhas e nem regras impossíveis de seguir para aprendermos a andar. Foi um processo lento e auto gerido de experimentação, bundas no chão e choros até que finalmente o primeiro passo saiu.
E é essa proposta que o autor do livro traz para o mundo do tênis – que agora eu estendo ao mundo das letras.
Durante anos, me senti um peixe fora d’água no mundo do design. No primeiro workshop de tipografia que participei, eu era o administrador que tinha ido desenhar letras. Então imagina minha ansiedade para tentar desempenhar, me comparando àquelas pessoas super descoladas que já viviam o design há mais tempo.
Aqui vão algumas dicas que eu aprendi a duras penas, pincéis e mouses:
Rascunhar a Globotipo ajudou a me acalmar em relação ao tamanho do desafio de criar uma fonte que 100 milhões de pessoas veriam todo dia. Rascunho para o designer é o equivalente ao“olhar para a bola” no tênis. O foco é todo no presente.
Na minha mesa hoje.
Se tem algo que vejo que falta – e muito – na maioria dos estudantes é auto-confiança. Não sei de quem é a culpa. Pode ser a auto-cobrança, a expectativa exagerada dos pais ou professores, que fazem o design parecer algo de outro planeta – e a tipografia, de outra galáxia. Cansei de ouvir pessoas dizendo: “Nossa, tipografia é muito difícil!”. E aí as barreiras já se erguem antes mesmo de colocar o lápis no papel.
Fato é que a gente se cobra muito, tanto sobre o que fizemos (o passado) quanto como nosso trabalho será recebido (o futuro). Mas o segredo é tentar se manter o máximo possível no presente. Isso requer treinamento. Quanto mais experiência, mais a gente consegue.
E um outro detalhe: no tênis e na type, as pessoas que curtem mais o processo de aprendizado do que o resultado em si entendem que cada etapa leva a um patamar mais alto. E é aí que mora a felicidade no que se cria.
Se tem uma coisa que é importante no esporte é a respiração. Respirar com tranquilidade, saber o momento certo de inspirar e expirar ajuda muito na técnica. Na hora de desenhar uma letra, caligrafar não é muito diferente. Relaxar a mente para dar atenção intensa para a tarefa que se executa é fundamental. O jeito de encontrar essa tranquilidade é de cada um.
No design, nosso momento de performance mais nervoso é a hora de apresentar o trabalho para o cliente – depois para o mundo. Toda preparação anterior dá lugar àquele frio na barriga. Isso é ótimo, indica que aquilo é importante para você. A respiração e o treino ajudam a acalmar. Geralmente eu dou uma volta no espaço onde vou apresentar o projeto. Em uma palestra, converso com as pessoas, dou um oi para todos e já faço contato antes mesmo de subir ao palco. Meu pai chama isso de ganhar torcida a favor. Eu concordo.
Quando começamos, ter alguém mais experiente por perto ajuda e muito. O duro no começo é conseguir receber feedback sem perder o entusiasmo ou achar que precisamos mudar radicalmente de rumo. Um técnico menos experiente vai responder a uma bola fora com mil ideias e porquês do lance ter dado errado. Alguém mais consciente vai perguntar para o jogador: por que você acha que a bola foi fora? A resposta e reflexão do jogador é mais importante do que receber mil instruções que vão deixá-lo mais nervoso para a próxima bola.
No jogo interior do tênis a instrução para acessar a memória muscular é ter atenção à respiração e desligar o eu julgador focando no momento em que a bola quica no chão e quando ela encontra a raquete. Surpreendentemente isso faz com que o corpo responda naturalmente. O equivalente no design é não se afobar com todo e qualquer feedback que se recebe. Na maioria das vezes basta para quem está do outro lado (a figura do técnico) uma simples pergunta: o que você está achando?
Nesse momento, quem desenha acessa seu eu julgador para entender o que se pode mudar. O fato de ser uma auto-reflexão ajuda a capturar melhor o aprendizado. E aí a relação com o mentor e com o conselho/feedback passa a ser mais saudável.
Assim como no tênis, no mundo do design de tipos, a prática constante, a confiança em si mesmo e a abertura para aprender e crescer são vitais. O jogo interior da tipografia, assim como descrito por Tim Gallwey no contexto do tênis, exige a harmonização dos dois "eus" dentro de nós: o intuitivo e o crítico.
Errando umas cruzadas de “forehand” na caligrafia para entender melhor a Dupincel itálica.
A chave da felicidade, seja na quadra ou na prancheta, está em permitir que a intuição e a memória muscular sejam expressas, mantendo o julgamento crítico sob controle. E em saber que a atenção precisa se manter, em especial nas horas críticas – a conclusão de um projeto ou aquele 40-0 que acaba deixando a gente meio relaxado. Não é porque pareceu fácil que dá para deixar frouxo, o clichê aqui vale muito – o jogo só acaba quando termina.
Essa abordagem tem me ajudado a combinar as paixões pelo tênis e pelo design de letras de uma maneira divertida. Ao colocar em prática esses princípios, aprendi a desenvolver minhas habilidades, abraçar meus desafios e encontrar meu próprio caminho como designer.
Da próxima vez que você pegar uma raquete, um lápis (ou qualquer atividade que se proponha), lembre-se de respirar, confiar no processo e permitir que sua criatividade flua. O resultado pode ser uma bela letra ou um golpe vencedor, mas o verdadeiro triunfo está no aprendizado, na dedicação e no amor pelo que você faz.
Em última análise, seja no tênis ou na tipografia, o jogo é ganho de dentro para fora. Mantenha seu foco, nutra sua paixão e permita que a prática leve à perfeição. Isso não apenas enriquecerá sua arte, mas também sua vida.
E agora, que tal pegar um lápis ou uma raquete e começar a jogar?
Arthur Ashe. Jogador de tênis americano.
Rodrigo Saiani