Rodrigo Saiani
Todo mundo conhece o logotipo I ❤️ NY. Tanto é que a gente nem pensa em que contexto ele foi criado ou mesmo em quem o desenhou. Ele simplesmente existe, tá lá. E representa com perfeição o sentimento em relação a uma cidade – graças à criatividade, à força do tempo e repetição. Recentemente, uma nova iniciativa veio e nos fez questionar todo o poder desse símbolo (e mais algumas outras coisas).
A prefeitura e o governo do estado de NY conjuntamente comissionaram um projeto (numa parceria público-privada com a Partnership for New York City) para dar um gás na economia e turismo da cidade pós-pandemia. Tiveram a brilhante ideia de brincar com o clássico. O I (eu) se transformou em We (nós). A American Typewriter – fonte do logotipo original – deu lugar a uma Sans que “lembra a fonte do metrô de NY”. A fonte de apoio da campanha – tem NY no nome, mas quase nenhuma relação autêntica com a cidade. A recepção dos nova-iorquinos (e dos pitaqueiros de plantão na internet)? Rejeição absoluta.
Logotipo da nova campanha We ❤️ NYC
De forma super resumida:
"O novo logo 'We ❤️ NYC’, parte de uma campanha para superar a negatividade dos anos de pandemia, está recebendo críticas duras.
‘Isso é uma porcaria em todos os níveis concebíveis e também em alguns que existem além da percepção humana’, escreveu um blogueiro.
Além da reação imediata do mundo, designers saíram para tentar entender o que rolou. Às vezes entraram na discussão e apontaram as graves falhas, outras vezes experimentam atacar um briefing similar. E foi isso que me deu na telha esses dias.
Eu tenho uma fonte chamada Olivita. Ela se inspirou na American Typewriter, mesma fonte do famigerado logotipo original do Milton Glaser. Cê já parou para olhar a American Typewriter? Sério, se nunca fez, saca só… ela é incrível! No seu peso mais leve, é o resumo de uma fonte bem construída, com um tom de voz simpático, que homenageia – mas não ao pé da letra – o estilo das letras de máquina de escrever. Nos pesos mais pesados, ela ganha esquisitices que trazem ainda mais ternura e textura para esse clássico.
Specimen da ITC American Typewriter pelo MyFonts
Specimen da Olivita
Achei que seria uma oportunidade super interessante recriar o logotipo criticado com a minha fonte e ver no que ia dar. Sabia que teria que manipular suas curvas e proporções para conseguir um logotipo equilibrado dentro das premissas da ideia original. Meus objetivos para o exercício:
Milton Glaser, nascido e criado em NY, um dos designers que figura em qualquer livro sobre história do design, com criações para Bob Dylan, New York Magazine e, chegando na nossa história, o icônico logotipo I ❤️ NY feito em meados da década de 70 para recuperar a auto-estima e o turismo de uma cidade em decadência, com taxas de crime em crescimento.
Logotipo do Milton Glaser
Ele rascunhou o logotipo num papel, num yellow cab indo para a reunião – típico! Brincando com uma referência de Robert Indiana – a serigrafia, depois escultura LOVE em que as quatro letras se apresentam empilhadas – ele juntou as palavras I (eu) o e NY para entrar para a história do design gráfico mundial. Amante incondicional da cidade, doou o projeto para a cidade, que hoje arrecada algo em torno de 30 milhões de dólares por ano com o logotipo.
Depois do 11 de Setembro, o símbolo se reforçou, representando a unidade de uma cidade traumatizada pelo terrorismo sem precedentes.
Agora corta para 2023: a mesma cidade, um trauma diferente. A pandemia impactou a cidade de Nova Iorque de muitas formas. De pequenos negócios vindo à falência a grandes empresas mudando a forma de trabalhar com o sistema remoto e descentralizado. Pobreza em crescimento, turismo estagnado.
Objetivos similares e campanhas diferentes. A Founders, agência responsável pela campanha, trouxe a palavra WE para assumir o posto da pessoa. O "nós" fala sobre união, sobre chegar junto e resolver os problemas da cidade de forma coletiva. Boa ideia.
A execução é que trouxe a dor de cabeça: eles resolveram mudar e mudar completamente o logotipo original do Milton Glaser. Vá lá, eu sou 100% a favor de olhar para o design do passado e desconstruir a noção de que só o que já é familiar e concretizado tem valor. Mas digamos que nesse caso… não rolou.
A adição do C ao NYC (de cidade), o WE que mudou o logotipo original de 4 letras para 6; a mudança brusca de relação entre o coração e as palavras; a ilustração tridimensional e estilo emoji para o coração. Foram mudanças demais, até para Nova Iorque.
Ao mesmo tempo, discordo de uma das críticas que ouvi. A de que o WE ❤️ NYC agora passa a parecer mais comercial do que o original, que era uma declaração de amor pessoal à cidade. Honestamente, não enxergo uma grande diferença entre as duas, tendo o logotipo original sido criado com uma intenção muito parecida com essa de agora, trazer mais turistas e fomentar os negócios.
Sempre fico muito com o pé atrás de criticar algum projeto do qual não participei. Os contextos, comitês, clientes são tão diferentes, que qualquer análise passa a ser leviana. Mas não deixo de ter uma opinião. Nesse caso, minha opinião é a de que uma homenagem ou evolução do logotipo original e uma grande campanha em torno disso já teria sido o suficiente para causar impacto e aquecer o coração da cidade.
Sendo assim, resolvi experimentar esse caminho. Partindo da Olivita, redesenhei o logotipo mudando o “I” por “WE” e voltando o NYC para NY, por uma questão de simetria.
O exercício, que você pode acompanhar na íntegra (fique à vontade para lançar o 2x sem dó), parte da principal reclamação do público sobre o novo logotipo – a assimetria e posicionamento do coração em relação às letras. Primeiro desafio: criar um avatar pronto para ser usado no caso mais extremo de identidades visuais nessa década, os minúsculos avatares de rede social. É tipo o fax dos anos 2020. Se funcionar ali, funciona em qualquer lugar.
Registro do processo no Twitter
Trabalhei durante exatos 30 minutos na primeira versão, adaptando a Olivita para o logo. Usei a nova ferramenta intertwine do Adobe Illustrator e consegui um resultado em que as letras se empilham de forma similar ao I ❤️ NY, mas o coração acaba sendo abraçado, tanto pelas pessoas (WE) como pela cidade (NY). Curti o resultado e criei uma versão horizontal que também se beneficia dessa brincadeira com o entrelaçamento de letras e símbolo.
O resultado "final"
Postei nas redes e foi super interessante ver a reação. Muita gente curtiu, outras não gostaram. Algumas acharam o logotipo bold demais, entre elas o Erik Spiekermann, autor de um dos livros que me fizeram cair de amores pelo design com tipografia. Confesso que não concordei com ele – que achou que o logotipo era um grito e não uma declaração de amor. Ainda assim, achei que seria educativo modificar o logotipo para uma versão mais leve e documentar o processo. Meu primeiro desenho foi o ponto de partida. Até poderia ter trazido a American Typewriter para a equação, mas mostrar o processo de resolver os problemas de tirar o peso de um logotipo bold seria mais interessante para mim e para quem quisesse acompanhar meu processo.
Versão light do meu logotipo
As principais mudanças são nas serifas, que devem ser mais longas, no aparecimento da serifa do E que ocupa o espaço de forma mais harmônica e cria uma massa visual equivalente à outras letras. Busquei um equilíbrio no empilhamento, mesmo lidando com letras diagonais como o W e ou Y – tipicamente difíceis de equacionar em arranjos como esse.
No dia seguinte, ou mesmo nas horas seguintes a compartilhar as imagens, percebia melhorias a fazer – isso demonstra que refinar e descansar o olhar é fundamental para o desenho de um logo.
Enfatizei no fio do Twitter o desafio que é desenhar um logotipo como esse para uma campanha de verdade, com múltiplos clientes fungando nosso cangote, prazos e pressão pelo sucesso de todos os lados. Não é nada fácil e ainda é difícil, diria o meme. Mas – diríamos todos nós que não estivemos do lado de lá do projeto – temos certeza que faríamos muito melhor (risos nervosos).
Minha experiência com projetos deste tipo é a de respeitar o clássico mas se atrever a refrescar o olhar. Poucos projetos de sucesso precisam de um chacoalho tão grande quanto o que foi feito nessa nova campanha. Me restringi tipograficamente e tracei um objetivo simples e isso é completamente diferente de um projeto real.
Empatizo com a equipe e clientes envolvidos no processo, sem deixar de dar meus dois centavos de opinião e mão na massa.
Compartilhei todo o processo no twitter e também os arquivos usados nesse micro-projeto. Desde então fiz alguns poucos ajustes para resolver problemas de ver o projeto “no dia seguinte”. Divirta-se e faça com ele o que bem entender.
Para escrever esse relato-estudo de caso, tentei ler tudo que pude sobre o projeto original, o atual e o contexto nova-iorquino para cada um dos dois. Se quiser fazer o mesmo caminho, deixo algumas recomendações:
Uma adaptação do projeto do Glaser para o título "We ❤️ NYC"
Rodrigo Saiani