Valter V Costa
Dos ídolos da Plau, talvez o que se senta mais alto no panteão seja o Cláudio Gil, um dos calígrafos mais talentosos do mundo e, por sorte, nosso amigo. Os workshops do Cláudio Gil sobre o chamado “alfabeto fundamental” (que funciona como uma introdução à caligrafia no alfabeto “padrão”, digamos) costumam terminar com um exercício que já é conhecido entre seus alunos. Usando uma ponta chata e colocando em prática tudo que foi aprendido na aula, o aluno deve escrever a frase “legibilidade é a regra básica, fundamental, sine qua non”.
No exercício, a ideia é mais focar no branco do que no preto, ou seja, a gente pode até não ser muito virtuoso no desenho das formas, mas é importante ter uma boa noção das proporções delas, do espaço entre as letras, das partes não preenchidas, do ritmo. Tudo isso vem do branco que, aliás, também é essencial para a legibilidade.
Cláudio Gil pintando um mural
Legibilidade é a regra básica, fundamental, sine qua non. Sempre achei curiosa essa escolha do Cláudio de frase para encerrar os workshops. Quando participei de um deles, entendi que a frase funcionava para o exercício para além do significado. Ela tem algumas características na estrutura que servem para praticar vários aspectos diferentes do alfabeto fundamental.
Ainda assim, não conseguia parar de ler a frase como significado, não só como peça visual. Pensava: “como assim o Cláudio Gil defende que a legibilidade é condição sine qua non?” Não que eu queira desdizer ele, claro. Mas se você conhece o trabalho do Cláudio sabe que ele é autor de algumas das peças mais maravilhosamente ilegíveis que alguém já viu.
Depois entendi algumas coisas. Primeiro, obviamente, o tema do workshop. Quando você está aprendendo o alfabeto fundamental, legibilidade é, também, fundamental. Segundo que, se você está começando na caligrafia, é mais importante entender a legibilidade antes para depois explorar livremente o desenho de letras. Dominando a legibilidade, você consegue fazer qualquer coisa, inclusive as ilegíveis. Entendo que esse é o caminho que o Cláudio Gil quer indicar para os alunos.
Poderia passar horas falando do Cláudio Gil, mas fiz essa introdução para chegar, na verdade, em outro ponto. Quero comentar alguns recentes acontecimentos do branding. Os lançamentos dos novos logotipos da Kia e da Nokia, com alguns meses de distância, fizeram um burburinho no meio do design.
De jeitos diferentes, essas marcas brincam com legibilidade. A Kia conectou as letras do seu nome, enquanto a Nokia fez um jogo entre vazio e preenchido onde uma letra do logotipo completa a outra. Em comum, a tentativa de levar as marcas para um ponto que pareça mais tecnológico, de ponta.
A Nokia está marcando de vez seu foco no B2B, e definiu como mote estratégico “Criar tecnologia que ajude o mundo a agir junto”. O logo interpreta esse propósito com letras que só podem ser lidas em contexto, atuando juntas. O posicionamento estratégico não poderia ser mais genérico, vamos combinar, mas ainda assim o logotipo conseguiu dar uma solução original a ele, o que é louvável.
Esse fio no Twitter do @DracoImagem chama atenção para um ponto interessante, aliás: o que é considerado tecnológico está sempre associado a uma remoção de elementos. Quanto menos partes, mais futurista. É como se os únicos valores desejados para o futuro fossem a eficiência e a limpeza. Podemos deixar esse tópico da eugenia visual para outro texto, mas o fato é que tanto Nokia como Kia partem dessa premissa da remoção de partes nos seus novos logotipos.
O logo da Kia ficou famoso por confundir as pessoas, fazendo explodir as buscas no Google por uma tal marca "KN". O da Nokia, por outro lado, parece melhor resolvido, mas ainda assim algumas pessoas enxergam “Nocia”, ou mesmo “Aocia”.
Aqui na Plau, passamos um bom tempo reclamando da tendência de uniformização das marcas, que de uma hora para outra decidiram ir pelo caminho da “neutralidade” (bota aspas nisso). O que, tipograficamente, significava uma série de logotipos tediosos. Esse longo inverno durou alguns anos, mas, felizmente, parece estar sendo deixado para trás.
A helvetização da moda
As marcas parecem estar mais uma vez dispostas a buscar uma voz marcante, mais do que se esvaziarem para encaixar em qualquer lugar. Inclusive, uma das marcas-símbolo do momento da uniformização, a Burberry, já lançou um novo rebranding, agora voltando à origem histórica da marca, com um visual super expressivo.
É nesse contexto também que surgem projetos como os da Kia e Nokia. Essa é a boa notícia, nós adoramos ver esse tipo de experimentação em logotipos, não pela experimentação em si, mas por que são logos com uma relação estreita com o produto e a marca que eles comunicam.
Ou seja, começamos bem. O primeiro ponto é positivo. Por exemplo, sem entrar no mérito da leitura, o logo atual da Kia encaixa muito melhor e deixa os carros da marca muito mais interessantes do que o anterior. Ele é agressivo, metálico, forte. O anterior era simpático demais para a aplicação. É esse tipo de relação do logo com o produto que gostamos de ver.
Logo anterior: independentemente do momento da marca, sabemos que a Kia não gosta da barra do A
Já na questão da legibilidade, o buraco é mais embaixo. E olha que, para deixar bem claro, eu não sou o bastião da moral e bons costumes tipográficos. Acho que a dificuldade de leitura pode ser usada como recurso em algumas situações. Mas também entendo que se você vai usar formas não convencionais para suas letras, elas devem estar lá para acrescentar ao todo, não para atrapalhar.
De maneira mais clara, o logo da Kia não é bom (se é que você considera ele bom) por causa da confusão entre A e N. Ele funciona apesar dela. A confusão poderia ser resolvida e o logo continuar tão interessante quanto.
Já no caso da Nokia, entendo que existe uma ousadia maior no desenho, então seria difícil ele ficar mais legível sem que a proposta do logo como um todo mudasse.
Nessa aplicação o logo vai bem demais
O que existe em comum entre essas marcas é o fato de serem gigantes que, gostemos ou não, podem se dar ao luxo. Elas podem não ser tão reconhecíveis de primeira, mas vão ser marteladas tantas vezes na nossa cabeça que logo mais ninguém vai enxergar KN ou AOCIA. E como legibilidade é costume, a legibilidade delas vai crescer na gente.
Se você tem uma marca e ela ainda não é essa Coca-Cola toda, talvez não seja uma boa ideia desafiar a leitura do seu logo, por que seu público pode não ter a chance de vê-lo de novo.
Resultado: é possível não se importar tanto com a legibilidade em algumas situações, mas para boa parte dos casos, especialmente se você está começando, talvez seja mais jogo considerá-la a regra básica, fundamental, sine qua non.
Valter V Costa