Valter Costa
O mercado de design corporativo tem acompanhado, nos últimos anos, um boom no desenvolvimento de tipografias customizadas. As marcas que desenvolveram suas fontes custom incluem Netflix, Airbnb, IBM, Coca-Cola, Samsung, Apple, YouTube, Uber, Google e Formula 1. O mercado nacional não está atrás e grandes empresas como Globo, Reserva, Gol, Boticário, Natura, Uol, Folha de São Paulo e Latam já investiram em tipografia, afim de diferenciar ainda mais suas marcas.
Specimen da Globotipo, fonte proprietária da Globo | Plau
Fontes Humanas Reserva | Plau
Fonte customizada da Natura | Blackletra
GOL Sans, tipografia proprietária da GOL | Fábio Haag Type
Cada empresa teve um motivo particular para concluir que precisariam de uma fonte própria, afinal, uma tipografia pode servir a vários propósitos. Vamos destrincha-los melhor mais adiante, mas já adiantamos dois dos principais: percepção de marca e facilidade de uso.
Percepção de marca porque fontes são células-tronco de comunicação que carregam o DNA da marca por onde passam. Tipografia é um dos elementos mais reproduzidos na comunicação de uma empresa e precisa ser feita de propósito para ser uma porta-voz digna dos seus clientes.
Facilidade de uso por que elimina a preocupação com licenças, compliance e distribuição dos arquivos de fonte para agências, fornecedores e quem quer que faça serviços em seu nome.
Airbnb Cereal, tipografia custom do Airbnb | Dalton Maag
Detalhes da Netflix Sans | Dalton Maag
Mas quem acha que fontes customizadas são coisa do século XXI e de designer que gosta de inventar moda, engana-se redondamente. Essa história não começa com o Netflix e o Airbnb abandonando suas Helveticas e Gothams e apresentando fontes proprietárias.
A primeira fonte custom do mundo data ainda do século XVII, mais especificamente 1692: nessa data, o rei da França, Luís XIV, encomendou um tipo de letra para identificar seu reino. A fonte ficou conhecida como Romain du Roi (romana do Rei) e marcou época. Mal sabia Luis XIV que, mais de 300 anos depois, ela seria o gancho para uma discussão dos nossos tempos: o Roi nos ajudando a falar sobre retorno sobre investimento, seu xará ROI (return over investment).
A fonte, que foi encomendada em 1692, só foi começar a ser usada em 1702, dez anos depois (pra ficar 100% pronta foram 52 anos até ser concluída em 1745). Não só porque naquela época fontes demoravam mais a ser feitas – já que precisavam ser fundidas em metal – mas também porque nessa demanda específica foram empregados cientistas e engenheiros que discutiram anos a fio sobre a proporção matemática perfeita para o desenho. Não à toa, a comissão foi formada pela Academia Francesa de Ciências (Académie des Sciences).
Três coisas sobre isso: os caras levavam tipografia a sério; eles descobriram que personalização é importante e eles recusavam imitações.
Desde o início do Renascimento, no século XIV, alguns artistas já tentavam rascunhar proporções matemáticas para as letras. Afinal, o Renascimento, como momento de reinterpretação das culturas clássicas grega e romana, era justamente o período de busca das proporções áureas nas artes plásticas – pintura, arquitetura, escultura. E a tipografia não estava à parte desse movimento.
Mas nenhum desses rascunhos foi muito para a frente. Até, claro, o desenvolvimento da romana do rei. Ou seja, ela nasce para ser – pelo menos na cabeça do reino – a fonte das fontes, a tipografia perfeita, a forma definitiva das letras. A equipe que criou a romana do rei se baseou em uma malha construtiva de 8×8, subdividida mais 32 vezes para gerar nada menos do que 2.304 minúsculos quadradinhos.
Malha de construção de algumas letras da romana do rei
Estamos acostumados a pensar em “sans geométricas”, as fontes que praticamente tomaram de assalto o mundo corporativo atual, como é o caso do Airbnb ou do Google, por exemplo. Não costumamos pensar em “serifadas geométricas”. Mas é exatamente isso que a romana do Rei era. Ou, pelo menos, tentava ser.
Depois de desenhar as letras nessa malha super detalhada, o Rei convidou o célebre tipógrafo Philippe Grandjean para a tarefa. Na hora do vamuvê, Grandjean teve que realizar uma reinterpretação dos desenhos e não uma aplicação literal deles. Fez isso porque sabia muito bem que tipografia não é matemática. O regente de toda obra tipográfica é o olho. Ou seja, ele teve que fazer o que chamamos de “ajustes óticos”: pequenos consertos que podem não fazer muito sentido na matemática, mas são vitais para uma leitura confortável.
Diferença entre desenho original da Romana do Rei (acima) e desenho com ajustes (abaixo). | Acervo de Fernando Mello
O tataraneto de Luís XIV, o rei Luis XVI da França, não foi pioneiro apenas ao ser o primeiro rei decapitado nas revoluções burguesas da História, mas também por convocar o “caderno de queixas” (cahiers de doléances) durante o seu reinado. Nele, o rei convidava o clero, a nobreza e o “terceiro estado” (também conhecido como povão) a escrever e enviar ao reino sugestões para o governo. Era uma forma de fazer parecer que o Estado estava preocupado com os anseios da população, naquele ano que marcava o início da Revolução Francesa, 1789.
Capa do caderno de reclamações de 1789
Todas essa contextualização serve para propormos um exercício de imaginação. Digamos que Luis XIV, algumas décadas antes, tivesse seu próprio caderno de queixas e que nele escrevesse o porquê de encomendar uma tipografia para o reino. Como ele seria escrito? Poderia ser algo assim:
Nosso exercício de imaginação supõe alguns dos motivos pelos quais o reino teria encomendado uma tipografia. São eles:
Ou seja, o reino, a essa altura, era uma marca.
Como fonte oficial do escritório de impressão Real, aqueles que ousassem imprimir outros materiais usando a fonte estariam cometendo uma ofensa capital. Imitações eram, pra dizer assim, desencorajadas.
Porém, como acontece com frequência na história do desenho de tipos, outras fundidoras tipográficas trataram de criar fontes similares, mas com características marcadamente diferentes da Roman du Roi. Ninguém seria tão maluco ousado.
No fim de 2018, com a necessidade de responder às manifestações dos chamados “coletes amarelos” na França, o presidente Emmanuel Macron reviveu a ideia do “caderno de queixas” para ouvir a população. Dessa vez, de maneira menos analógica do que na época de Luís XVI, é claro.
Mais uma vez vamos nos aproveitar do caderno de queixas. Agora, para listar quais motivos uma marca do século XXI pode ter para se queixar de sua tipografia atual.
Um recurso simples na fonte pode mudar completamente a comunicação de uma marca. No caso da Dariquim – produtores de queijo da Canastra -, a fonte faz com que frações se transformem automaticamente numa fatia equivalente de queijo. Perfeito para vendas! | Plau
Ou seja: a fonte custom pode ser qualquer coisa que você quiser. Desde uma licença especial a um aspecto técnico crucial para sua marca. Além, é claro, do ponto definidor dos projetos custom: a tipografia vai ter a cara da sua marca.
Depois de 300 anos de história, dinastias, reis, revoluções e designers, vamos finalmente contar a real do ROI: a real do ROI é que é quase impossível dar um valor numérico-financeiro sobre o retorno sobre investimento em fontes, mas que isso não deve ser um fator limitador do projeto.
A tipografia é uma ferramenta do design, portanto, é parte de um sistema maior. Não podemos separar, em valores, um do outro. O bom type design depende do bom design gráfico para funcionar.
Perguntamos sobre essa questão a Matthew Rechs, ex-diretor de tipografia do serviço Adobe Fonts. A resposta dele nos deixou encucado: “Você tentaria medir o ROI de uma mudança de cor numa marca? Ou sobre itens de segurança na montagem de um carro? E se a tipografia serve para comunicar, como você separaria o ROI da fonte do ROI do texto que ela escreve?”. Ou seja, tentar delimitar o valor exclusivo de uma tipografia é ignorar que a natureza dela é justamente ser uma interlocução com outras ferramentas. Ainda que queiramos dar uma resposta objetiva para a questão, o Rechs está certo. Não dá.
O valor de uma fonte como peça de comunicação está sempre atrelado à mensagem que as letras carregam. Tudo isso faz com que não possamos criar uma fórmula para calcular o retorno sobre esse tipo de investimento.
O que podemos sim saber é que toda marca precisa dominar essa ferramenta, seja como elemento criativo ou técnico. E que algumas empresas têm na tipografia seu principal elemento de marca, mas que às vezes nem elas mesmas sabem disso.
Matthew Rechs também tocou em outro ponto interessante: “A questão não é definir o valor do investimento sobre esse elemento específico, mas definir que sua marca tome decisões deliberadas sobre cada um dos seus processos e produtos”. Desde cor a elementos de segurança e, claro, tipografia.
Tomar decisões conscientes sobre cada detalhe de sua operação. Faz sentido, não?
O rei diria que sim.
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Esse texto contou com valiosos comentários, observações e imagens de Henrique Nardi, Victor Calcagno, Billy Bacon, Fernando Mello, Fábio Haag e Álvaro Franca. Obrigado a cada um pela ajuda!
Valter Costa