Valter V Costa
Conteúdo em parceria com a editora Ubu
Conhecido no Brasil como ‘e’ comercial, o ampersand é um caractere especial do nosso sistema de escrita. Ao contrário das letras, que são símbolos exclusivamente fonéticos, o ampersand possui um significado próprio. Não importa onde seja aplicado, ele significa sempre uma adição; é substituto da conjunção ‘e’.
Até o século XIX, o ampersand era considerado a 27ª letra do alfabeto (nos países anglófonos). Não existe um evento definido que narre a queda do ampersand da categoria de letra, mas o fato é que ele sempre foi o primo estranho desse sistema.
E – lamentavelmente para esse símbolo tão querido – outro fato é que faz todo sentido ele ter perdido seu status no alfabeto. É estranho pensar no ‘&’ como letra porque ele representa, na verdade, duas letras. O símbolo nada mais é do que uma ligatura entre as letras “et”, palavra que em latim significava ‘e’ (conjunção).
A origem mais aceita do ampersand – que só recebeu esse nome dezoito séculos depois – é uma inscrição encontrada numa parede da Pompeia (cidade do Império Romano soterrada pela erupção do Vesúvio – posteriormente descoberta preservada pelo mesmo material vulcânico que a destruiu).
Mas antes dele já existia outro símbolo para a palavra “et”.
Ampersand da Pompeia
Ampersand como 27ª do alfabeto em um livro de alfabetização | MSU Libraries
No século I a.C., o filósofo e figura pública da Roma Antiga Cícero encomendou a Marco Túlio Tiro (seu secretário, escriba pessoal e ex-escravo) um sistema de abreviações para o alfabeto latino, inspirado no conhecimento de Cícero sobre o alfabeto grego.
O sistema desenvolvido por Tiro possuía milhares de símbolos. Estes passaram a ser conhecidos como “notas tironianas”. O sistema faz, aliás, Tiro ser considerado “o pai da taquigrafia” (a escrita a partir de abreviações e símbolos).
Livros inteiros poderiam ser escritos com notas tironianas, que aceleravam a escrita e – para um leitor treinado – facilitavam a leitura. Estamos falando de um período onde o espaço entre palavras não era utilizado, então um símbolo que representava uma palavra inteira poderia ser um guia importante na leitura.
Apesar disso, com o passar dos anos, as notas tironianas foram sendo jogadas para as margens dos livros, ou seja, viraram um código para leitores fazerem anotações sobre os livros. Apenas o “et” sobreviveu por mais tempo.
“et” tironiano
Segundo Keith Houston, o ampersand da Pompeia é uma espécie de filho bastardo do et tironiano. É bom lembrar que ambos nasceram nos limites do Império Romano. Os dois conviveram juntos por muito tempo, inclusive passando por um período onde o et tironiano era considerado o et minúsculo e o ampersand era seu equivalente maiúsculo.
Depois de perder muito da sua popularidade e assistir seu “filho bastardo” virar o preferido dos escribas, o símbolo de Tiro foi resgatado pela escrita gótica da Idade Média e tornou-se padrão nesse tipo de alfabeto. Como os primeiros livros impressos da Europa utilizavam fontes góticas, isso significa que o et de Tiro foi impresso antes do ampersand. Com a chegada do Renascimento e o retorno da escrita romana, no entanto, a soberania foi mais uma vez roubada desse símbolo.
Interpretação digital dos símbolos | À esquerda, o símbolo de Tiro; à direita, o ampersand da Pompeia
Nenhuma das duas origens da ligatura “et” mostra um ampersand muito parecido com o que conhecemos hoje. Na verdade, o et tironiano tem seu desenvolvimento próprio; nunca chegou a parecer um ampersand. O que nos interessa aqui é o ampersand da Pompeia. O desenho original mostra um símbolo simplificado ao máximo, de forma que exige quase uma boa vontade para enxergar as letras "et”.
É só no século VII (lembrando que a erupção do Vesúvio que soterrou a Pompeia aconteceu no ano 79 do século I d.C., então esse desenho teria que ter sido feito no máximo até esse ano) que aparecem registros de manuscritos com o ampersand já parecido com a forma que conhecemos até hoje. Mas, mesmo depois disso, sua história visual é cheia de desvios e experimentações, ora passando por formas familiares para o nosso olhar de hoje, ora por formas irreconhecíveis.
A maior documentação feita até hoje sobre a evolução do ampersand foi publicada pelo tipógrafo lendário Jan Tschichold num livreto que, na sua edição em inglês, tem o título de “A brief history of the ampersand” [Uma breve história do ampersand – sem publicação no Brasil].
Parte da evolução do ampersand documentada por Jan Tschichold
Porém, apesar do registro visual ser riquíssimo, nem o próprio Tschichold consegue apontar exatamente o motivo de cada uma da evoluções, a não ser mesmo pela própria experimentação feita pelos escribas de cada época. Uma hipótese dele, no entanto, é digna de nota: Jan Tschichold acredita que, em algum momento, o ‘t’ em “et” tenha sido virado de cabeça para baixo e isso é o teria criado a forma que conhecemos do ampersand.
Pulando alguns séculos, chegamos no momento em que surge o ampersand itálico. Na documentação de Jan Tschichold, o primeiro registro de um ampersand itálico data de 1506. À época, a escrita itálica era uma escrita separada da romana. Alfabetos itálicos não eram usados juntos de alfabetos romanos para dar ênfase ao texto, como são usados hoje.
O ampersand itálico começa a dividir espaço com o ampersand romano | Jan Tschichold
Nesse contexto, o ampersand itálico desenvolveu-se não como uma adaptação do ampersand romano (&), mas como uma forma completamente diferente. O ampersand itálico é muito mais orgânico e fluído do que o romano, além de preservar mais as formas das letras “et”, que num ampersand romano são difíceis de visualizar. O ampersand itálico é uma presença rara nas fontes atuais, mas ainda presente naquelas que querem evocar um ar mais clássico e caligráfico da escrita. O mais comum é que as versões itálicas do ampersand tenham o desenho romano, só que oblíquos (inclinados).
Da esquerda para a direita, dois ampersands com desenhos itálicos e um ampersand de desenho romano, mas oblíquo | Fontes: Dupincel (esquerda e meio) e Motiva Sans (direita)
Lembra como o ampersand era considerado parte do alfabeto e ensinado no abcedário das escolas? Foi nessa época que ele ganhou seu nome. Até então, ele conhecido no inglês apenas como o caractere “and”. Mas quando as pessoas recitavam o alfabeto em voz alta era esquisito terminar com “X, Y, Z, and”, então ele passou a ser chamado de “per se and”, ou seja “conjunção ‘e’ por conta própria”. Com isso, o alfabeto falado em voz alta ficava assim: “X, Y, Z and per se and”. “And per se and” acabou virando uma espécie de gíria que, em algum momento, evoluiu para ampersand.
Seja com ou sem status de letra, sendo ou não útil na comunicação escrita, enquanto houver designer no mundo o ampersand nunca será deixado para trás. Ele é o caractere xodó dessas pessoas e poucos tipógrafos teriam alguma ressalva à afirmação de que esse é o glifo mais bonito de uma fonte.
No português não existe um padrão de aplicação do ampersand mas, de maneira geral, entende-se que ele é bem-vindo em nomes de empresa e aplicações artísticas. Fica ao gosto do designer, o que significa que provavelmente ele é usado um pouquinho mais do que o necessário, mas ainda assim menos do que merece.
Logotipo “Mother & Child”, um clássico do design desenhado por Herb Lubalin
Valter V Costa