Valter Costa
Em parceria com a Editora Ubu
Todo leitor atento provavelmente tem bem claro na cabeça o que é uma letra capitular, mesmo que não saiba seu nome. Queridinhas do design editorial, as capitulares podem até não ser sempre usadas hoje em dia mas, sempre que são, dão um charme para a publicação onde são aplicadas.
Capitulares são as letras iniciais de um parágrafo ou capítulo e que são graficamente destacadas para demarcar o início do texto. Geralmente esse destaque é dado a partir do tamanho dessa letra (bem maior do que das letras regulares do parágrafo), mas também pode acontecer através de cores e/ou elementos ilustrativos e decorativos. É importante marcar que o termo “capitular” ou “versal” significa – originalmente – letra maiúscula apenas. Aqui, no entanto, usaremos esse termo sempre como sinônimo do recurso gráfico que definimos no começo deste parágrafo, forma como o uso do termo popularizou-se.
Embora hoje capitulares sejam entendidas mais como elemento decorativo do que prático, nem sempre foi assim. Na Idade Média, auge da história das capitulares, elas serviam como elemento de organização da leitura – além de terem tornado-se também recurso narrativo para alguns livros.
Capitular ilustrada num manuscrito medieval | Biblioteca Municipal de Auxerre
As capitulares surgem antes mesmo das letras minúsculas (que se desenvolvem a partir da caligrafia conhecida como semiuncial e se estabelece na Europa a partir do século VI). Como as letras iniciais de cada frase ou parágrafo eram iguais às letras subsequentes – diferente do que estamos acostumados, uma alternância entre maiúsculas e minúsculas – o jeito mais fácil de marcar o início de uma texto era aumentando o tamanho dessa letra inicial.
Mas, mesmo depois do uso irrestrito das letras minúsculas pelos copistas, as capitulares decoradas mantiveram sua popularidade como auxiliares da hierarquia do texto. Na Idade Média, elementos paratextuais não eram ainda de uso amplo. Ou seja, número de página, cabeçalhos, aberturas de capítulos e outros recursos que hoje consideramos como padrão ainda não tinham pegado muito. Nem mesmo começar o capítulo numa página nova acontecia, porque eles não podiam se dar ao luxo de desperdiçar pergaminho.
Capitular ilustrada num manuscrito medieval | Bibliothèque virtuelle des manuscrits médiévaux(BVMM)
Capitulares dividindo o texto em seções |Bibliothèque virtuelle des manuscrits médiévaux(BVMM)
Esses livros são os famosos “manuscritos iluminados”. Por consequência, tais letras são conhecidas como “capitulares iluminadas”, “versais iluminadas” ou “iniciais iluminadas”. O termo “iluminado” ou “iluminura” referia-se ao fatos dos elementos decorativos desses livros serem finalizados com folha de ouro. Mas depois os mesmos termos passaram a designar qualquer manuscrito decorado (seja com ouro ou com cores).
Se ter livros já era coisa apenas dos ricos, manuscritos iluminados e luxuosos eram objetos apenas para os muito ricos. As edições pomposas que conhecemos da Idade Média e através das quais os manuscritos iluminados ficaram famosos não eram o padrão, como pode parecer. A maioria das cópias medievais eram bem mais simples. As edições iluminadas eram tão custosas que a decoração delas poderia ser mais cara do que o livro completo. E a iluminação exigia um profissional dedicado exclusivamente a isso. Enquanto o copista caligrafava o livro, o iluminador ou ilustrador acrescentava capitulares, ilustrações e ornamentos.
Com o surgimento dos tipos móveis de Gutenberg, de início os livros não sofrem uma mudança estrutural, apenas têm seu tempo de produção diminuído. Ou seja, o livro impresso era apenas uma continuação do livro manuscrito. Isso significa que, por algum tempo, as capitulares iluminadas mantiveram sua relevância intocada. Nos livros impressos, o impressor poderia deixar um espaço em branco no início de cada parágrafo para um escriba ou iluminador acrescentar as capitulares. Mas também apareceu aí a capitular impressa. As iniciais agora poderiam ser gravadas a partir de tipos móveis de metal ou madeira (mais comuns).
Por um tempo, continuaram até a serem coloridas. Os tipógrafos tinham as capitulares gravadas em dois ou mais tipos diferentes (com, por exemplo, a letra em um tipo e os ornamentos em outro), entintados e impressos separadamente. Essas eram conhecidas como “capitulares quebra-cabeça”. Na famosa Bíblia de 42 linhas do Gutenberg podemos encontrar esse tipo de versal. De todo jeito, não demora e as iniciais impressas passam a ser majoritariamente monocromáticas. No entanto, é bom lembrar que a prensa tipográfica não extinguiu imediatamente os livros manuscritos. Estes continuavam a ser desejados como artigos de luxo.
Capitular “quebra-cabeça” na Bíblia de Gutenberg | Biblioteca digital mundial
Alguns fatores fizeram com que as capitulares fossem perdendo espaço no mundo dos livros – e é difícil determinar quais deles é o mais decisivo. O mais óbvio é, claro, a impraticidade delas. Elas faziam a produção do livro ser mais lenta do que poderia ser. O segundo fator é que, com o desenvolvimento da linguagem do livro, as iniciais destacadas passaram a ser cada vez menos necessárias. O surgimento de itálicos e elementos paratextuais passam a fazer o trabalho de “sinalização” na leitura, levando as capitulares a uma posição estritamente decorativa, como as conhecemos hoje. O terceiro fator é mais especulativo, sugerido pelo pesquisador John Boardley, que defende que a passagem das capitulares pode ter sido acelerada simplesmente por uma questão de gosto estético da época, a partir do qual ela apenas deixou de ser interessante.
Fato é que, mesmo considerado esse declínio após o surgimento da tipografia, as capitulares nunca perderam por completo sua presença no mundo das letras. Hoje elas permanecem como elemento importante de hierarquia editorial em jornais e revistas, mas também não são aparição rara em livros.
Capitular mocromática | Book Historian (Flickr)
Valter Costa