Uma publicação da Plau
  • Tipografia, Estudo de caso
  • Valter Costa

  • 20 de jun. de 2022

As letras de Severance (Ruptura)

Já entendi que meu amor pela tipografia é renovado nos momentos em que eu não estou pensando nela – ou quando eu não estou esperando pensar nela. Ver TV é a atividade que mais costuma gerar esse sentimento. Isso é tão verdade que pode acontecer até quando o que estou assistindo é uma obra que usa pouquíssima tipografia.  

É o caso da série Severance (2022), produzida pela Apple, que relata uma espécie de inferno filosófico-corporativo. Nela, trabalhadores de uma grande empresa (a Lumon, cuja atividade é tão sigilosa nem os próprios funcionários sabem o que exatamente estão fazendo lá) são submetidos voluntariamente ao processo chamado de “ruptura”: uma incisão no cérebro que separa memórias pessoais de memórias profissional. 

Na prática, quando estão no trabalho não lembram de nada das suas vidas pessoais – nem mesmo sabem das pessoas que são fora do trabalho –, assim como não sabem nada sobre seus próprios trabalhos quando estão fora dele. 

Ou seja, o que acontece de fato é que duas pessoas passam a existir, uma de dentro e uma de fora (“internos” e “externos”, tradução de “innies” e “outies”, termos da série). E as internas estão condenadas a viver para sempre confinadas no prédio da Lumon. Isso até a aposentadoria, que simboliza a morte do interno.  

Eu me arriscaria a dizer que a arquitetura e o design de interior/produto são os principais recursos que a série usa para contar essa história. O mais interessante é que a sinopse pode nos levar a pensar num cenário distópico (“futurista”) clássico, mas é exatamente o contrário. 

Numa das primeiras cenas da série, nada nos sugere que estejamos diante de uma empresa muito tecnológica

O prédio e as salas da Lumon são claramente inspirados pela arquitetura modernista do meio do século XX, como se a gente fosse levado a imaginar qual é o ambiente de trabalho definitivo, aquele que resume a toda ideia de trabalho que temos na cabeça.

O trabalho fotográfico de Lewis Baltz serviu de inspiração para a direção de arte da série. O fotógrafo usa arquitetura como elemento de poder, mas também isolamento.

Playtime (1967), filme clássico do Jacques Tati, é uma das representações mais simbólicas dos escritórios modernistas como ambiciosos e impessoais

Isso faz todo sentido, porque a série junta elementos do passado com elementos do futuro e, dessa soma, sai tudo de pior que o ambiente corporativo pode oferecer: a imposição e rigidez do escritório físico aliados a uma tecnologia desumanizante.

A luz branca e a perspectiva infinita dos corredores tomam conta da ambientação da série

Na Lumon, os corredores são estreitos e as salas são enormes. De uma maneira ou de outra, os espaços não incentivam muitos encontros. Seja porque os ambientes são muito apertados para caber várias pessoas ou porque são amplos até demais, criando distância entre elas. Mesmo quando há proximidade física entre os funcionários – nas suas mesas de trabalho – existem baias entre eles, fazendo com que não se vejam diretamente.

Outro fator que pesa para que esse ambiente seja o mais frio possível é que a comunicação verbal é limitada ao estritamente essencial. Por isso, falar sobre as fontes na série é tanto sobre a ausência como sobre a presença delas. 

No prédio da Lumon praticamente não existem letras. Não há quadros de avisos, cadernos de anotações, cartazes, post-its, sinais ou placas. Tudo é um grande vazio. As poucas letras estão limitadas aos computadores, alguns documentos oficiais e à entrada de cada departamento, com sua identificação correspondente. 

Em um dos poucos momentos que a tipografia é usada para ser amigável, ela faz tudo, menos parecer receptiva

Aliás, os elevadores da empresa possuem um detector de letras, que impede que os internos levem mensagens para os externos. Mesmo que os internos engulam o papel com a mensagem ou escrevam as palavras no seu próprio corpo. Obviamente, não pude deixar de ficar imaginando como funcionaria esse sensor e quais os parâmetros que ele usa para definir o que é uma letra (será que daria para burlar o sistema inventando um alfabeto novo ou levando as letras a um limite de ilegibilidade?).

Mensagem que a personagem Helly R. tenta levar para sua ‘outie’ – tentando burlar os sensores do prédio

O primeiro ponto que eu gostaria de falar sobre as letras de Severance, então, é justamente o fato de que elas não estão lá. Isso me deu o clique de que controlar a quantidade de aparições de uma fonte já é uma forma de dosar o nível de expressividade da comunicação, independentemente da questão de qual fonte vai ser usada nela. Mais palavras é igual a uma comunicação mais calorosa, mesmo que usemos uma fonte que julgamos fria. 

Quando colocado assim fica óbvio, mas isso me chamou tanta atenção na série que senti como uma descoberta. 
Agora falando sobre as letras que existem na série de fato: não vemos muitos elementos da identidade gráfica da Lumon, mas o logotipo e a tipografia de apoio casam muito bem com toda a ambientação da série. 

O logo é tão século XX que parece corresponder a um arquétipo de comunicação corporativa. O lettering é todo em maiúsculas de letras largas que se pretendem impositivas. Nele, a letra “O” é transformada numa espécie de gota e tudo isso é contido por uma redoma que lembra um ícone de planeta. Ou seja, mais corporativo impossível e, por isso mesmo, perfeito para série. 

Logotipo da Lumon apresentado numa TV de tubo

Os poucos departamentos que vemos na série (e isso por si só é um tema dela, pois os diferentes departamentos são intencionalmente mantidos isolados uns dos outros) são identificados pelo nome na entrada. Gosto da escolha de fonte aqui porque ela não apela para uma tipografia clássica, casa bem com o logo e porque me parece exatamente o que uma empresa dos anos 80 teria como referência de moderno.

Sinalização de entrada no departamento de “Refinamento de macrodados” (título tão sem sentido quanto parece)

No entanto, o que me deu a ideia de escrever esse texto não foi nenhum desses exemplos (ou “não exemplos”) de uso de fonte na série. Pensei em escrever sobre as letras de Severance por conta de um elemento que está fora dos escritórios modernistas da misteriosa Lumon: os créditos da série. 

É um detalhe mínimo, mas que me deu um sentimento muito específico de “essa galera sabe o que está fazendo”. Os créditos são composto em Helvetica e até aí tudo bem, é apenas a velha e gasta Helvetica, já vimos isso. Faz sentido por também remeter ao modernismo, assim como a arquitetura da empresa, e passar uma ideia de estandardização. 

Mas a miudeza de ouro pra mim é, além de ser usado o peso regular (o mais sem graça), não existe uma hierarquia entre as funções e os nomes das pessoas creditadas. O “dirigido por” tem exatamente a mesma configuração do nome dos diretores, sem diferenciação de peso ou tamanho.

Tá, e daí? Isso só quer dizer que ele não tem nada de mais, correto? Corretíssimo. E essa é a beleza da coisa. A hierarquia de título/autor dá pra ser considerada quase um padrão de créditos, usando qualquer elemento que seja: fontes diferentes, um nome todo em maiúsculas e o outro todo em minúsculas, tamanhos diferentes, pesos diferentes ou posições muito diferentes. Isso, naturalmente, aumenta a leiturabilidade do texto, porque fica mais fácil navegar entre uma informação e outra. 

Quando a série escolhe não criar essa hierarquia é porque existe um esforço deliberado em criar uma linguagem com mais cara de padronizada possível. Se no começo falei que o prédio da Lumon é como o ambiente de trabalho definitivo, aqui é como a manifestação tipográfica disso. A fonte mais padrão do mundo, no seu peso regular e sem diferenciação entre as informações. É o cúmulo do padronizado, sem expressão. Mesmo nessa minúcia quase irrelevante, me mostra que as intenções da série estão alinhadas e claras em todos os seus aspectos. 

Em qualquer outra série ou filme, eu acharia esse uso ruim, mas aqui acho uma escolha incrível. Alguém conseguiu me surpreender usando Helvetica, então não poderia deixar isso passar batido.  

Alguns comentários sobre Severance definem a série como sendo sobre o famoso “equilíbrio trabalho/vida”. Particularmente, não foi isso que vi. 

Pra mim, a série é sobre os limites da nossa ideia de trabalho. Todas as imagens arquetípicas que temos de trabalho são exacerbadas na série: o desgaste da rotina, a despersonalização das nossas atividades, a distância entre nossa função e o todo dos produtos/serviços que ajudamos a criar, o fato do trabalho não possuir valor algum para o trabalhador (além do salário), a desconfiança mútua entre patrão e trabalhador (e também entre trabalhadores), o isolamento criado entre o trabalhador e seus pares, o discurso corporativo que continuamente promete mais bem-estar para o trabalhador enquanto continuamente retira seu bem-estar. Enfim, dá para ir longe nas analogias. 

Fato é que a série brinca com essas fronteiras, testando até onde dá para esticar essa corda e ainda assim ser familiar para nós. E o universo de Severance é tão bem construído para essa proposta que mesmo a partir de um elemento muito pequeno na série – a tipografia – conseguimos ter um vislumbre claro do seu todo.

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A abertura da série é quase uma obra à parte e, ouso dizer, é a melhor abertura que eu já vi na vida. Foi produzida pelo designer/diretor Oliver Latta. Não deixe de assistir, clicando aqui.

Essa versão do texto contou com uma contribuição do Diego Maldonado. Valeu, Maldonado!

Fontes utilizadas nessa página
  • Vinila Regular
  • Guanabara Display Condensed
  • Dupincel S Regular
  • Odisseia Regular
Autor

Valter Costa