Uma publicação da Plau
  • Tipografia, História
  • Valter V Costa

  • 11 de ago. de 2023

As letras de Ariano Suassuna

Um dos maiores artistas da história brasileira deixou seu legado marcado também no mundo da tipografia (e do futebol)

No último dia 4 de agosto, o Sport Club do Recife e sua fornecedora, a Umbro, anunciaram a nova terceira camisa da equipe para o restante da temporada do futebol brasileiro. Uniformes número 3 são edições especiais — já que nenhum clube é obrigado a tê-los, apenas os dois conjuntos regulares para jogos dentro e fora de casa — e, esse ano, o Sport decidiu usá-lo para homenagear um torcedor ilustre.

Nascido na Paraíba, Ariano Suassuna se mudou para Pernambuco na adolescência e lá passou o resto da vida. Mas o Sport apareceu na vida de Ariano antes mesmo do Recife — começou a torcer para o Leão quando ainda morava na Paraíba.

No filme de lançamento da camisa, o Sport mostra o trecho de uma fala de Ariano (quem já passou tempo suficiente rondando o YouTube deve ter, em algum momento, caído em cortes de palestras dele, e sabe que são todos divertidíssimos) onde ele conta a história de que foi convidado para um evento que exigia traje esporte fino. Sem saber muito bem o que significava esporte fino, pegou um casaco preto — que, segundo ele, daria a “finura” do traje — e pensou: bom, eu sou torcedor do Sport e as cores dele são preto e vermelho; o preto eu já tenho, falta o vermelho. Isso resolveria a questão. Um casaco preto e uma camisa vermelha, indiscutivelmente, montariam um traje Sport Fino.

Ariano usando seu traje Sport Fino, inspiração para a nova camisa do Sport

Sport Fino. Esse é o tema campanha e, principalmente, da camisa, que recria o traje clássico de Ariano — que, aliás, não foi usado pelo autor apenas no evento citado no vídeo. O conjunto se tornou uma das suas marcas registradas.

Tá, mas por que estamos interessados nesse uniforme?

Calma, vai fazer sentido agora.

Ainda nesse mesmo filme de lançamento, vemos muito de relance a coisa que inspirou este texto. É claro, ela, a inescapável tipografia.

No vídeo, nós vemos apenas o número 10 na camisa. Talvez até por menos de um segundo no total. Mas o desenho é tão icônico e tão conectado com o conceito que a referência fica na cara.

A fonte que o Sport usa na nova camisa faz referência a um movimento artístico liderado por Ariano Suassuna. Mais do que isso, a fonte vem de uma criação direta de Ariano.

O movimento que ele idealizou se chama Movimento Armorial. Essa foi uma busca de Ariano e artistas contemporâneos por uma arte erudita que fosse construída sobre raízes populares brasileiras. Especialmente, raizes sertanejas.

Foto tirada na exposição"Movimento Armorial — 50 anos", no CCBB-RJ(2022, arquivo pessoal)

Armorial originalmente se refere a um livro de brasões e escudos, mas Ariano reinterpretou a palavra e fez ela significar o registro de toda uma espécie de mitologia sertaneja, digamos assim — Ariano gostava de usar a palavra como adjetivo, como uma qualidade, e não apenas como substantivo.

De todo jeito, o significado original ainda é muito presente no movimento, que, em grande parte, produz uma arte de brasões, bandeiras, símbolos, arquétipos.

Gravura de Ariano Suassuna — Foto tirada na exposição“Movimento Armorial — 50 anos”, no CCBB-RJ (2022, arquivo pessoal)

O movimento que ele idealizou se chama Movimento Armorial. Essa foi uma busca de Ariano e artistas contemporâneos por uma arte erudita que fosse construída sobre raízes populares brasileiras. Especialmente, raizes sertanejas.

A lógica que dá essa base para o movimento é que a conexão que Ariano fazia entre a vida no Nordeste e o imaginário sobre a Idade Média, defendendo que existia uma relação forte entre fenômenos históricos.

Bandeiras também são características do movimento Armorial – Foto tirada na exposição“Movimento Armorial — 50 anos”, no CCBB-RJ (2022, arquivo pessoal)

Ele justificava dessa forma: “Sempre tive como fonte de inspiração o mesmo sertão mítico. O sertão dos jagunços, majoritariamente nordestino. Assim como o inegável arcaísmo do Nordeste, a conservação de suas condições materiais e espirituais quase da Idade Média. Além, é claro, de sua organização social essencialmente feudal e que preservou essa parcela da nacionalidade de todo o modelo incaracterístico do Ocidente moderno.”

Então olha que fascinante: buscando as raizes da arte sertaneja, Ariano encontrou inspiração na Europa da Idade Média. Claro que a ideia não era imitar a arte medieval, mas reconhecer que existia um “espírito” em comum entre essas coisas.

Além de terem em comum elementos práticos – as "condições materiais", em recursos como a xilogravura, por exemplo.

Seres mitológicos e cavaleiros são parte universo armorial — Foto tirada na exposição“Movimento Armorial — 50 anos”, no CCBB-RJ (2022, arquivo pessoal)

A ideia do movimento era representar essas “condições materiais e espirituais” por completo. Por isso, faziam parte dele todo tipo de manifestação artística: literatura, música, teatro, moda, gravura, escultura, cinema e, sim, até tipografia. O próprio Ariano costuma ser lembrado apenas como escritor e dramaturgo, mas era um artista multidisciplinar.

Sempre tive como fonte de inspiração o mesmo sertão mítico. O sertão dos jagunços, majoritariamente nordestino. Assim como o inegável arcaísmo do Nordeste, a conservação de suas condições materiais e espirituais quase da Idade Média. Além, é claro, de sua organização social essencialmente feudal e que preservou essa parcela da nacionalidade de todo o modelo incaracterístico do Ocidente moderno.

Ariano Suassuna

Figurinos armoriais — Foto tirada na exposição“Movimento Armorial — 50 anos”, no CCBB-RJ (2022, arquivo pessoal)

Você já deve ter ouvido falar ou visto em filmes, a heráldica medieval, que era a linguagem de símbolos que representavam as famílias da época. Esses brasões resumiam toda a tradição de uma família e eram passados de geração em geração, então cada uma poderia também atualizar o brasão com elementos que considerava importantes. 

Eles costumavam ser muito vibrantes em cores, muitas vezes usando animais como símbolo (filmes de cavaleiros medievais são o melhor lugar para ver a heráldica em jogo).

Brasões no filme "Coração de cavaleiro" (2001)

Ufa, finalmente podemos falar da fonte!

Pois bem, a fonte que o Sport usa na nova camisa é uma releitura do chamado Alfabeto Sertanejo, desenvolvido por Ariano Suassuna.

O site oficial do Sport fala assim: “As fontes escolhidas para as numerações e nomes nas costas também contam com tal inspiração literária, e remete-se diretamente à estética criada pelo imortal da Academia Brasileira de Letras” (não aprofunda muito nos detalhes, mas só do site de um clube de futebol mencionar a escolha de fontes numa camisa já é demais).

O alfabeto sertanejo é baseado no que Ariano definiu como a heráldica sertaneja. Mas como assim uma heráldica sertaneja?

"Ferros do Cariri — Uma heráldica sertaneja", livro de Ariano Suassuna — Foto tirada na exposição“Movimento Armorial — 50 anos”, no CCBB-RJ (2022, arquivo pessoal)

É simples. As letras são inspiradas em ferros de marcar gado. Os ferros de marcar gado são uma referência estética muito marcante no sertão, no interior, no Nordeste; são símbolos de identificação; são passados de geração em geração; carregam tradição e são populares. Juntando tudo isso temos uma heráldica tipicamente sertaneja.

Página interna do livro “Ferros do Cariri — Uma heráldica sertaneja” — Foto tirada na exposição“Movimento Armorial — 50 anos”, no CCBB-RJ (2022, arquivo pessoal)

Esses símbolos da heráldica sertaneja Ariano usou para ilustrar as manifestações armoriais, então o alfabeto aparecia em todas as suas gravuras, sendo algo como a “fonte oficial” do movimento.

Gravura que aplica o alfabeto sertanejo

Naturalmente, ela não era uma fonte propriamente dita, mas entrava nas gravuras como ilustração. Então não existe “o” alfabeto sertanejo, mas vários. É um estilo de letras, não uma tipografia específica.

As letras são inspiradas em ferros de marcar gado. Os ferros de marcar gado são uma referência estética muito marcante no sertão, no interior, no Nordeste; são símbolos de identificação; são passados de geração em geração; carregam tradição e são populares. Juntando tudo isso temos uma heráldica tipicamente sertaneja.

Veja como cada gravura tem sua própria leitura do alfabeto, ele não tem uma estrutura fixa — Foto tirada na exposição“Movimento Armorial — 50 anos”, no CCBB-RJ (2022, arquivo pessoal)

Esse estilo é marcado principalmente pela finalização das letras, com traços que terminam em flechas, foices ou outros símbolos resumidos de maneira muito simples, remetendo ao próprio material do ferro e referências do contexto sertanejo.

Outra característica marcante desse desenhos são os traços, de maneira geral, monolineares, com pouco contraste.

As letras são tão expressivas que cada uma acaba virando quase que um logotipo, com um significado próprio.

Monograma do artista Romero de Andrade Lima usando como base o alfabeto sertanejo mostra possibilidades do alfabeto como logotipo — Foto tirada na exposição“Movimento Armorial — 50 anos”, no CCBB-RJ (2022, arquivo pessoal)

Mais do que isso, é um estilo de letra muito comunicativo, então, mesmo que você não conheça nada dessa história toda, só de bater o olho já dá para sentir mais ou menos de que universo estético ele vem.

Voltando para a camisa, a tipografia está não só nos nomes e números, mas em detalhes da camisa inteira. Ela aparece como inscrições em marca d’agua; no selo que foi criado com o rosto de Ariano e na gola, com uma frase conhecida do autor: “felicidade é torcer pelo Sport”.

Tipografia nos detalhes da camisa

É um estilo de letra muito comunicativo, então, mesmo que você não conheça nada dessa história toda, só de bater o olho já dá para sentir mais ou menos de que universo estético ele vem.

A versão do alfabeto que a camisa usa é a Tipografia Armorial, fonte desenvolvida por Ricardo Gouveia de Melo e Giovanna Caldas.

Tipografia Armorial, de Ricardo Gouveia de Melo e Giovanna Caldas

O conceito foi tão abraçado nesse lançamento, que até o patrocinador master do Sport modificou seu logotipo para ser aplicado na blusa, adotando também a tipografia armorial (e a gente sabe que grandes empresas não costumam se empolgar muito com alterações nos seus logos).

Logotipo modificado da patrocinadora do Sport

E ainda tem mais. No dia de estreia da camisa — numa partida contra o Novorizontino pela série B do campeonato brasileiro — a própria comunicação do Sport nas redes adotou a fonte.

Post das redes oficiais do Sport

Até o placar do estádio adotou a linguagem da campanha

O uso da Tipografia Armorial nas redes do clube ficou restrito apenas ao momento de estreia da camisa, mas seria muito interessante ver o Sport trabalhar com essa fonte no longo prazo.

Só que parece ter algum erro na versão da fonte que o clube usa. O Ricardo Gouveia de Melo, um dos autores da fonte, gentilmente nos enviou o arquivo dela e percebemos que o espaçamento da versão que ele enviou está muito melhor resolvido do que vemos na artes que o Sport postou.

Talvez eles tenham pego uma versão antiga da fonte ou, por algum engano, tenham usado o kerning óptico (ajuste matemático de espacejamento, calculado pelos próprio softwares de manipulação de imagem/vetor) e não o kerning da própria fonte, programado pelos designers. De qualquer forma, essa questão atrapalhou algumas das aplicações (veja uma comparação abaixo).

Ricardo nos informou que o Sport não entrou em contato com ele nesse projeto.

Veja como existem alguns buracos no espaçamento, como no próprio nome do time e no nome Fábio

Na versão da fonte cedida por Ricardo Gouveia de Melo, o kerning resolve alguns dos principais problemas de espaçamento

Mas o que importa mesmo é que, apesar desse probleminha técnico, a campanha já foi muito bem feita (e que a camisa é linda, aliás). Foi um acerto em cheio do Sport e da Umbro. Já é certamente um dos lançamentos de camisa mais interessantes da história do futebol brasileiro. E, é claro, aqui a gente dá uma estrelinha a mais para esse trabalho por terem dado tanto protagonismo à tipografia.

Conheça mais

O designer e pesquisador Luciano Cardinali fez uma releitura do alfabeto sertanejo, desenvolvendo sua fonte Nova Armorial. A Nova Armorial interpreta o estilo dando uma estrutura tipográfica mais sólida para ele, o afastando do caráter vernacular. É um conceito que mostra como o alfabeto sertanejo pode se manifestar de formas muito diferentes, não estando restrito aos desenhos originais.

Cardinali também escreveu um artigo acadêmico sobre o assunto, e ele foi uma das importantes referências do nosso texto. Se quiser aprofundar sua leitura sobre a tipografia armorial, leia o artigo aqui.

Esse texto do Cadu Carvalho discorre sobre o cenário amplo do Movimento Armorial e do alfabeto sertanejo, mostrando outros artistas influentes, além de Ariano Suassuna.

Fontes utilizadas nessa página
  • Vinila Regular
  • Guanabara Display Condensed
  • Dupincel S Regular
  • Odisseia Regular
Autor

Valter V Costa